Que ninguém duvide que a figura de um espião ainda é extremamente atraente ao imaginário popular. Por isso a todo momento o cinema traz adaptações de grandes romances de espionagem, embora nem sempre sendo fiel às suas raízes literárias. A figura de um agente secreto em uma missão super confidencial e de grande importância não é uma invenção recente da cultura pop mas um arquétipo recorrente e romanceado de uma prática real e nada glamurosa. Suas origens remontam na verdade séculos de atividades e exercícios ligados a intrigas políticas e jogos sombrios nos bastidores do poder.
O escritor norte americano James Finemore Cooper (1789 – 1851) – autor do clássico “O Último dos Moicanos – foi um dos primeiros a criar uma história de intriga política nos romances “O Espião” (1821) e “O Bravo” (1831), precursores de um gênero que só seria reconhecido no século XX. A lendária agência de detetives Pinkerton, além de ter tido participação na captura de notórios fora-da-lei, conseguiu evitar um atentado ao Presidente Abraham Linconl através de ações de vigilância que comprovam a máxima de Sun Tzu, autor de “A Arte da Guerra”, que fala sobre “ser extremamente sutil, tão sutil que ninguém possa achar qualquer rastro”. Se sutileza e mistério são essenciais na espionagem, a elas se juntou uma arma ainda mais eficaz: a sedução. Com ela a exótica Margaretha Gestruida Zelle (1876 – 1917) ganhou a eternidade como Mata Hari, que durante a Primeira Guerra (1914-1918) trabalhou para alemães e franceses, sendo por isso executada. Dançarina e cortesã, Mata Hari agia tal qual Milady de Winter na trama dos “Três Mosqueteiros” , fazendo do sexo uma arma tão ou mais mortífera que uma arma de fogo. “Mata Hari” foi vivida no cinema por Greta Garbo em 1931 , Jeanne Moreau em 1964 e Sylvia Kristel em 1985. Sua figura de curvas sinuosas e movimentos furtivos inflamou a imaginação e serviu de imagem fundamental para a caracterização de agentes eficientes na arte de coletar informações.
O estouro de duas Guerras Mundiais e as intrigas advindas dos interesses políticos instigaram a necessidade de agir de forma vigilante e preventiva contra inimigos em potencial, comprovando que “a supremacia da guerra é derrotar o inimigo sem lutar”, como no tratado de Sun Tzu. O cinema mostrou isso em filmes como “Agente Secreto” (1936), “O Homem que Sabia Demais” (1934 e refilmado depois em 1954) , “O Sabotador” (1940) e “Intriga Internacional” (1959), todos do mestre Alfred Hitchcock e que deixaram bem claro a importância no mercado negro das informações confidenciais para atentados, insurreições e conspirações que podem abalar o equilíbrio de forças no mundo. O mundo bipolarizado do pós-guerra fez da guerra fria um elemento fértil para elaboração de tramas intricadas e teias conspiratórias. Mais do que nunca se via a importância de se controlar o fluxo de informações e evitar que o lado inimigo ganhasse qualquer vantagem. Manter vigilância constante significava se proteger. Nas palavras de Sun Tzu o lado vencedor de um conflito precisava de vidência, não de espíritos ou deuses, mas de homens que conhecessem o inimigo. Assim as atividades de contra-espionagem ganharam importância absoluta.
O gênero, contudo, ganhou a cultura pop com a chegada de Bond, James Bond, publicado pela primeira vez no romance “Cassino Royale”, de Ian Fleming, em 1953, e transposto para as telas nove anos depois em “007 Contra o Satânico Dr.No” com Sean Connery, o primeiro de seis atores que, desde então, viveram o agente favorito de sua majestade, e do público. Bond nunca teve um rival a altura, em termos de popularidade e longevidade nas telas, mas teve vários imitadores. Em 1966, James Coburn viveu o agente Derek Flint em “Flint Contra o Gênio do Mal” e , no ano seguinte, em “Flint : Perigo Supremo”. Na mesma ocasião Matt Helm, o espião criado nos livros de Donald Hamilton, ganhou o ar cool de Dean Martin em 4 filmes: “O Agente Secreto Matt Helm”, “Matt Helm Contra o Mundo do Crime” , “Emboscada para Matt Helm” e “Arma Secreta Para Matt Helm”. Diferente dos livros, o tom dos filmes é de paródia com Dean Martin explorando sua própria persona: um bon-vivant, cercado de belíssimas mulheres e que, por acaso salvava o mundo. Os anos 60 fizeram da figura do agente secreto parte da cultura pop, tornando-o quase um super – herói, mas se distanciaram dos elementos literários onde o trabalho de inteligência é descrito de forma mais fria, destituído de qualquer glamour. Mais próxima dessa abordagem são os filmes em que Michael Caine interpretou o agente Harry Palmer, criado pelo autor britânico Len Deighton. Enquanto que nos livros, o agente de Deighton é um narrador anônimo que apenas tem o primeiro nome mencionado uma vez, nos filmes produzidos por Harry Saltzman o personagem ganha uma identidade com a qual o público possa se relacionar, mas mantem o ar desglamourizado de um mero operário do governo. Os filmes “Ipcress : Arquivo Confidencial”(1965), “Funeral em Berlin” (1966) e “O Cérebro de Um Bilhão de Dolares” (1967) ajudaram a reforçar no imaginário popular a figura do espião como o salvador da democracia e da liberdade contra as forças do mal. O escritor britânico John Le Carré se concentrou em aprofundar nesse lado frio e sem encantos da espionagem, não uma brincadeira, mas um braço forte do jogo de poder das nações. Entre seus livros estão “O Espião que Saiu do frio” (1963), “A Garota do Tambor” (1983), “A Casa da Rússia” (1989), “O Espião que Sabia Demais” (1974) e “O Homem Mais Procurado” (2008) são best sellers frequentemente adaptados para o cinema, sendo esses dois últimos as mais recentes visitações de Hollywood com excelentes atuações, respectivamente, de Gary Oldman e Philip Seymour Hoffman.
Igualmente importantes no gênero são os autores Robert Ludlum e Tom Clancy. O primeiro é o pai do espião Jason Bourne. Uma arma humana treinada pelo governo para matar e que acaba por se tornar um embaraço e uma ameaça para o sistema quando perde sua memória. Sua história foi mostrada em “A identidade Bourne” (1980), “A Supremacia Bourne” (1986) e “O Ultimato Bourne” (1990), adaptados para o cinema a partir de 2002 com Matt Damon no papel de Bourne. Os livros de Ludlum são embebidos de ação e intriga, tendo sido escritos entre 1980 e 1990. Neles o agente secreto é simplesmente um assassino controlado por organizações que regem os acontecimentos das sombras fazendo uso de manipulações, traições e lavagem cerebral sem nenhum freio moral. Bourne também se distancia dos super espiões auto confiantes estilo James Bond já que em sua missão em campo não há aliados e o protagonista privado de sua memória só pode contar com seus instintos. Nos livros Bourne foge de seus empregadores, da justiça e trava um xadrez mental com o vilão Carlos, o Chacal, o terrorista mais letal do mundo inspirado em uma pessoa real, o mercenário e assassino venezuelano Ilich Ramirez Sanchéz, vulgo Chacal, que cumpre prisão perpétua na França. Nos filmes estrelados por Matt Damon, com exceção de alguns elementos dos livros toda a história foi reescrita.
Já Clancy mostrou-se hábil em retratar os bastidores do Serviço de Inteligência Americano, e o uso de novas tecnologias com seu agente Jack Ryan. O autor foi elogiado pelo então presidente norte-americano Ronald Reagan na ocasião da publicação de “A Caçada ao Outubro Vermelho” . A ele se seguiram outros livros, todos adaptados para o cinema e vivido por 4 atores diferentes: Alec Baldwin, Harrison Ford (Jogos Patrióticos & Perigo Real e Imediato), Ben Affleck (A Soma de Todos os Medos) e , mais recentemente, Chris Pine no reboot “Operação Sombra:Jack Ryan”. O serviço de streaming Amazon Prime Video já lançou a série “Tom Clancy’s Jack Ryan” protagonizada por John Krasinski conseguindo impressionar pelo apuro na adaptação do rico material do autor em uma eletrizante série de ação.
Casos como o do analista de sistemas Edward Snowden (retratado no oscarizado documentário “Citizenfour”) que denunciou a máquina de espionagem e invasão de privacidade mostra que a vida real imita a arte, sem os requintes e o lado fantasioso de Hollywood, mas com o rigor de saber que há séculos vigilância e dissimulação fazem parte dos jogos de poder. Vigilância e tráfego de informações são ferramentas da manutenção da ordem mundial, já rendendo o vindouro filme “Snowden” que chega aos cinemas no final desse ano. Com isso não resta dúvidas de que muitas guerras são travadas em meio às sombras que se estendem muito além do alcance dos olhos, pois na prática a supremacia dos jogos de guerra reside na estratégia de conhecer teu inimigo, tornando-se o próprio, planejando na escuridão e agindo rápido como um trovão e buscando um xeque-mate. Nisso, a literatura soube explorar melhor que o cinema.